Por Romero Lobo
Sola Scriptura é o ensinamento de que a Bíblia é inspirada por
Deus e constitui-se na única e legítima fonte de regramentos de fé e conduta
para o cristão. Este princípio sustenta que as Sagradas Escrituras não
necessitam de interpretação alheia, o que contraria o pensamento da Igreja
Ortodoxa, das Igrejas Orientais, da Igreja Copta, da Igreja Católica e do
Anglo-Catolicismo, as quais pregam que as Divinas Letras só podem ser fielmente
interpretadas por meio da Tradição Apostólica.
A
intenção dos reformadores era a de corrigir aquilo que julgavam equivocado no
catolicismo, por meio da unicidade da autoridade da Bíblia, de modo a abolir todos
os dogmas proclamados pela Santa Sé depois dos primeiros cinco concílios ecumênicos.
Neste sentido, os pensadores do protestantismo se baseavam na afirmação de
Paulo constante da 2ª Carta a Timóteo 3.16, de que “Toda a Escritura é divinamente
inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir
em justiça”.
Para os
reformadores, somente a Escritura Sagrada tem a palavra final em matéria de fé
e prática. É o que ficou consubstanciado nas Confissões de Fé protestantes. A
Confissão de Fé de Westminster, adotada hoje em dia por muitas Igrejas
Presbiterianas e Reformadas, afirma:
“Sob o
nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora todos
os livros do Velho e do Novo Testamento, ... todos dados por inspiração de Deus
para serem a regra de fé e de prática...
A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e
obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende
somente de Deus (a mesma verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser
recebida, porque é a palavra de Deus... O Velho Testamento em Hebraico... e o
Novo Testamento em Grego..., sendo inspirados imediatamente por Deus e pelo seu
singular cuidado e providência conservados puros em todos os séculos, são por
isso autênticos e assim em todas as controvérsias religiosas a Igreja deve
apelar para eles como para um supremo tribunal... O Juiz Supremo, pelo qual
todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas e por quem serão
examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores,
todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja
sentença nos devemos firmar não pode ser outro senão o Espírito Santo falando
na Escritura”.
Nos
movimentos de inspiração protestante considerados historicamente como
fundamentalistas, como os anabatistas e puritanos, e outros surgidos durante o
século XIX, esse princípio foi condensado no conceito NudaScriptura, afirmando que a Bíblia deveria ser entendida ao pé
da letra, adotando-se o lema de que a "A Escritura interpreta a própria
Escritura", e, como tal, seria "suficiente como única fonte de
doutrina e prática cristãs" em todos aspectos.
Há que
se dizer que o princípio Sola Scriptura
não descarta por completo alguns aspectos relevantes da Tradição Apostólica,
apenas postula que, quando há divergências entre esta e a Escritura, a última
deve ter a primazia. A base desta doutrina é de que as escrituras são
perfeitas, e que ninguém pode pôr outro fundamento além do que está proposto, o
qual é Jesus Cristo, o Verbo de Deus. Desse modo, segundo Paulo, qualquer um
que pregar outro evangelho, mesmo se for um anjo, seja anátema (maldito), ou,
como João afirma em Apocalipse 22.18,19:
“Declaro
a todos os que ouvem as palavras da profecia deste livro: Se alguém lhe
acrescentar algo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. Se alguém
tirar alguma palavra deste livro de profecia, Deus tirará dele a sua parte na
árvore da vida e na cidade santa, que são descritas neste livro”.
A
Igreja Católica Romana também aceita as Escrituras como a Palavra de Deus,
porém não as considera como sendo a única Palavra de Deus. O catolicismo
fundamenta sua doutrina sobre o tripé: Tradição Apostólica, Bíblia e
Magistério. A Igreja Católica acredita que os postulados da Igreja, alcançados
por meio dos seus concílios ou dos desígnios do papa, quando deliberam
oficialmente em matérias sobre fé e moral, são igualmente a palavra de Deus.
Esse conceito é o que se chama de Tradição da Igreja.
Essa
autoridade concedida à Igreja baseia-se na comissão deixada por Jesus e
descrita em Mateus 28.19,20, que na visão católica, deu à Igreja a tarefa de
proclamar Sua Boa-Nova e que prometeu que Ele estaria sempre conosco, até o fim
dos tempos, nos guiando para a verdade (João 16.13). Este mandato e esta
promessa garantiriam que a Igreja jamais se desviaria dos ensinamentos de Jesus
Cristo.
Decorre
desta incapacidade da Igreja, em seu conjunto, de extraviar-se no erro com
relação aos temas básicos da doutrina de Cristo, a questão da infalibilidade
sacramental da Igreja, que é consubstanciada no Papa, homem que representa Cristo
e possui o dom do Espírito da infalibilidade papal. Sobre esta questão, o Concílio
Vaticano II ensina que esta infalibilidade, “da qual quis o Divino Redentor estivesse
sua Igreja dotada, é a infalibilidade de que goza o Romano Pontífice, o Chefe
do Colégio dos Bispos, em virtude de seu cargo, a infalibilidade prometida à
Igreja, que reside também no Corpo Episcopal, quando, como o Sucessor de Pedro,
exerce o supremo magistério".
Em
oposição direta à questão da infalibilidade, a doutrina Sola Scriptura entende que a unção cristã é individual e suficiente
para capacitar qualquer membro do corpo de Cristo a discernir a Palavra de
Deus, revelada nas Escrituras. Neste sentido, a Bíblia deve ser acessível a
todos e não ser reservada para uso exclusivo dos clérigos católicos, como era
costume até então, que impediam o acesso dos comuns, para que não tivessem a
oportunidade de, lendo, perceberem que havia grande contradição entre as
Escrituras e os discursos e desmandos da cúria romana. Por esta razão, entre
outras ações, Martinho Lutero traduziu o Novo Testamento para o alemão.
Além
disso, com relação à infalibilidade do papa, os protestantes lembram os
ensinamentos de Paulo no capítulo 3 da Carta aos Romanos, que diz que “todos pecaram
e estão destituídos da glória de Deus” e que “não há nenhum justo, nem um
sequer, que faça o bem”, de modo que ninguém será declarado justo baseando-se
em seus próprios atos.
Por
outro lado, desde o Concílio de Trento, o catolicismo contesta de maneira
sistemática o ensinamento Sola Scriptura.
Os religiosos presentes naquele concílio, contrários aos ensinamentos de
Lutero, mantiveram-se firmes contra as interpretações individuais das Sagradas
Escrituras, como descrito a seguir:
“Ademais,
para refrear as mentalidades petulantes, decreta que ninguém, fundado na
perspicácia própria, em coisas de fé e costumes necessárias à estrutura da
doutrina cristã, torcendo a seu talante a Sagrada Escritura, ouse interpretar a
mesma Sagrada Escritura contra aquele sentido, que [sempre] manteve e mantém a
Santa Madre Igreja, a quem compete julgar sobre o verdadeiro sentido e
interpretação das Sagradas Escrituras, ou também [ouse interpretá-la] contra o
unânime consenso dos Padres, ainda que as interpretações em tempo algum venham
a ser publicadas” (XIX Concílio Ecumênico, parágrafo 786).
Afirmam
os católicos que a doutrina da Sola
Scriptura, paradoxalmente, não consta nas Escrituras, sendo ela mesma uma
invenção de Lutero, de modo que os protestantes criam não na Bíblia, mas na
criação de um homem, o que estaria contrariando os ditames descritos em
Jeremias 17.8: “Assim diz o Senhor: "Maldito é o homem que confia nos
homens, que faz da humanidade mortal a sua força, mas cujo coração se afasta do
Senhor””.
A Sola Scriptura, do ponto de vista católico, atentaria contra a
lógica: nas Escrituras, não consta o que é a Bíblia, sendo assim, para se
tentar compreender o que é a Bíblia, seria necessário sair das Escrituras,
descumprindo assim a Sola Scriptura.
Outro ponto de contradição, segundo a visão católica, é que nem tudo foi escrito
nas Escrituras, como consta na própria Bíblia, na 2ª Carta de João 1.12: “Apesar
de ter mais coisas que vos escrever, não o quis fazer com papel e tinta, mas espero
estar entre vós e conversar de viva voz, para que a vossa alegria seja
perfeita”.
Neste
sentido, segundo a Igreja Católica Romana, existem preceitos neotestamentários,
formulados por São Paulo, que ordenam aos cristãos a obediência à Tradição
Apostólica, como no versículo 15 do capítulo 2 da 2ª Carta aos Tessalonissenses
“Por isso, irmãos, fiquem firmes e mantenham as tradições que lhes ensinamos de
viva voz ou por meio da nossa carta” ou no versículo 6 do capítulo 3 “Intimamo-vos,
irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que eviteis a convivência de todo
irmão que leve vida ociosa e contrária à tradição que de nós tendes recebido”.
Os
opositores da Sola Scriptura defendem
ainda que tal doutrina não poderia, pela lógica, receber crédito, uma vez que
todos os cristãos dos primeiros três séculos do cristianismo morreram sem
conhecer uma Bíblia, cujo cânone só foi concluído em 393, pelo Concílio de
Hipona. Eles alegam que, se fosse realmente a intenção de Cristo que seus
seguidores obedecessem somente às Escrituras em detrimento da Tradição e do
Magistério, Ele o teria dito, ou lhes deixaria uma Bíblia.
Contra
esses sofismas católicos, pesam as próprias evidências históricas apresentadas
pelos pensadores da Igreja Católica. Paulo pede que “fiquem firmes e mantenham
as tradições que lhes ensinamos” em razão de ainda não haver, naquele tempo um
Novo Testamento organizado ou mesmo escrito. Apesar de já existirem as
Escrituras que hoje são conhecidas como Antigo Testamento, o Evangelho estava
sendo revelado ao mesmo tempo em que a Igreja Primitiva crescia e se espalhava
por meio das viagens missionárias de Paulo e dos esforços dos outros
evangelistas. Assim foram sendo escritos os evangelhos sinóticos, o registro
histórico dos atos dos apóstolos e as cartas destinadas aos cristãos distantes.
Esses
escritos que hoje compõem o Novo Testamento, assim como os que compõem o Antigo
Testamento, foram submetidos a escrutínio durante o Concílio de Hipona e achados
conformes diante de uma análise eclética que os considerou divinamente
inspirados e consistentes com a Palavra de Deus que foi revelada desde o livro
de Gênesis. Neste sentido, considerou-se o que não constava desses escritos,
não havia sido contemplado pela inspiração divina e, portanto, seria
considerado irrelevante.
Ainda,
conforme dito anteriormente, o conceito Sola
Scriptura aceita alguns aspectos da Tradição Apostólicae interpretações
pontuais das Escrituras, quando aquelas guardam de todo a coerência,
convergência e consistência com relação aos preceitos destas, o que é o caso do
Concílio de Hipona. Desse modo, aquele congresso acabou por definir a nova
composição das Escrituras que, abrangendo tanto a Dispensação da Lei quanto a
Dispensação da Graça, deveriam ser seguidas pela Cristandade.
Neste
sentido, são válidas tanto a teologia sistemática quanto as pregações de
púlpito, desde que a mensagem seja alinhada com os preceitos da Bíblia. Agora,
a visão protestante afirma com a Sola
Scripturaque todos os pregadores das Escrituras estãosujeitos a deslizes e
erros, ao contrário da doutrina católica da infalibilidade sacerdotal. Pode-se,
inclusive, dar como certo que em algum momento um dessespregadores, mesmo um
dos membros da direção de uma das muitas igrejas evangélicas, vai cometer uma
gafe doutrinária.
Além
disso, o principal objetivo histórico da Sola
Scriptura era o de garantir o direito individual de acesso ao texto
sagrado, que a Igreja Católica, ao longo dos séculos, conforme a conveniência da
manipulação das massas, retirou do leigo, isolando-o numa dependência da
interpretação dirigida e casuísta da Cúria Romana.
Para
evitar o desvirtuamento da mensagem, a Sola
Scriptura prevê mecanismos que defendem o direito e, porque não dizer, o
dever do cristão comum ler e meditar sobre as Escrituras, de modo que ele mesmo
obtenha a revelação que valide a mensagem a ele pregada. Essa é a ideia que está
por trás do costume protestante de sempre levar a Bíblia para a Igreja, para que
se possa conferir a pregação do Pastor, como faziam os bereanos, e da
necessidade de se testificar a mensagem pregada por meio do espírito, possuidor
da revelação bíblica. Como descrito em Atos 17.10,11:
“Logo
que anoiteceu, os irmãos enviaram Paulo e Silas para Bereia. Chegando ali, eles
foram à sinagoga judaica. Os bereanos eram mais nobres do que os tessalonicenses,
pois receberam a mensagem com grande interesse, examinando todos os dias as
Escrituras, para ver se tudo era assim mesmo.”
De
qualquer maneira, a Sola Scriptura se
faz presente em todo o processo, pois, se assim for, as Escrituras terão
fundamentado a fé e a conduta de todos quantos as tenham buscado.
Outra
questão é aquela que Paulo alertou não só os Tessalonissenses, mas também aos
Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses, contra os ventos de
doutrina que vinham tentar desviar os crentes do Evangelho que ele estava pregando.
Como está escrito em Gálatas 1.6:
“Admiro-me
de que vocês estejam abandonando tão rapidamente aquele que os chamou pela
graça de Cristo, para seguirem outro evangelho que, na realidade, não é o
evangelho. O que ocorre é que algumas pessoas os estão perturbando, querendo
perverter o evangelho de Cristo. Mas, ainda que nós ou um anjo dos céus pregue
um evangelho diferente daquele que pregamos a vocês, que seja amaldiçoado! Como
já dissemos, agora repito: Se alguém anuncia a vocês um evangelho diferente
daquele que já receberam, que seja amaldiçoado! ”.
Isso
aconteceu em função de, tendo Paulo já pregado a Dispensação da Graça aos
gentios, alguns convertidos de origem judia passarem pelas comunidades arregimentadas
por Paulo para pregar uma volta ao legalismo, um retorno ao cumprimento da Lei
mosaica, conforme está descrito em Atos 15.1,2:
“Alguns
homens desceram da Judeia para Antioquia e passaram a ensinar aos irmãos: “Se
vocês não forem circuncidados conforme o costume ensinado por Moisés, não
poderão ser salvos”. Isso levou Paulo e Barnabé a uma grande contenda e discussão
com eles. Assim, Paulo e Barnabé foram designados, com outros, para irem a
Jerusalém tratar dessa questão com os apóstolos e com os presbíteros. ”
De
igual modo, a Igreja Católica nos tempos da Reforma Protestante, reputando-os
por incompletos e ilógicos, abandonou a pureza dos ensinos das Escrituras e
utilizou a doutrina da Tradição Apostólica para construir e validar a cultura
da salvação pelas obras. Em virtude da Reforma Protestante e como resultado da
Sola Scriptura, com o tempo, foi devolvido o DIREITO e o PODER do cristão
protestante de discernir as verdades da Palavra de Deus. Então esses DIREITO e
PODER evoluíram para DEVER. Ou seja, o cristão protestante pode, precisa e deve
se alimentar da Palavra de Deus, que o sustenta e protege de vãs ideologias e
ventos de doutrina.
Ainda assim,
o mesmo fazem os cristãos protestantes, nos dias atuais, sempre que abandonam o
princípio da Sola Scriptura e permitem
que os preceitos da Bíblia sejam alterados para acomodarem novos rituais,
regras, sacramentos ou mandamentos criados em nome da tradição, da modernidade
ou da religiosidade.
É
necessário uma vigília constante sobre a doutrinaSola Scriptura, Estaque é considerada o princípio formal da Reforma
Protestante. O Evangelho de Jesus Cristo é portantoa fonte e a norma da Sola Fide(somente a fé), o princípio
material da Reforma, e da Sola Gratia
("somente a graça"). Esse princípio indica que a Bíblia não está
sozinha, longe de Deus, mas sim que é o instrumento pelo qual Deus se revela
para a salvação pela fé em Cristo (SolusChristus).
Como está escrito em Mateus 4.4: “Mas Jesus respondeu: Está escrito: Não só de
pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”.
Para
finalizar, Martinho Lutero, tido como fundador do protestantismo, resume a
doutrina Sola Scriptura em uma única
frase, proferida durante uma disputa teológica com Johann Meyer, em 14 de julho
de 1519:
Romero
Lobo é
Coronel da Aeronáutica,
Mestrado em Ciências Políticas,
e autodidata em História das Religiões
Nenhum comentário:
Postar um comentário