sábado, 23 de janeiro de 2016

Sola Fide


Por Romero Lobo

Sola Fide é o ensinamento de que a justificação (interpretada na teologia protestante como "sendo declarada apenas por Deus") é recebida somente pela fé, sem qualquer interferência ou necessidade de boas obras, como Paulo afirma em Efésios 2.8, “Vocês são salvos por meio da graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus”. Na teologia protestante clássica, essa fé salvadora é evidenciada, mas não determinada, pelas boas obras, uma doutrina que pode ser resumida na fórmula "fé produz justificação e boas obras".

Em contraste, a fórmula Católica Romana declara que "a fé e as boas obras rendem justificação". O argumento católico é baseado na Epístola de Tiago (Tiago 2.14,17):
“De que serve, meus irmãos, se alguém disser que tem fé se não tiver obras? Acaso pode essa fé salvá-lo?
Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e necessitarem do pão quotidiano,
E algum de vós lhes disser: "Ide em paz, aquentai-vos e saciai-vos," e não lhes derdes o que é necessário para o corpo, que lhes aproveita?
Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma.”

É importante a comparação do que católicos e protestantes entendem como "justificação": ambos concordam que o termo invoca a transmissão dos méritos do sacrifício de Cristo aos pecadores e não uma declaração de ausência de pecado. Lutero usou a expressão “simuljustus et peccator” (ao mesmo tempo, justo e pecador). Mas o Catolicismo Romano vê a justificação como uma comunicação da virtude de Deus ao ser humano, limpando-o do pecado e transformando-o realmente em filho de Deus, de modo que não é apenas uma declaração, mas a alma é tornada de fato objetivamente justa.

Se essa alma é verdadeiramente justa, para os católicos, as obras que atuam junto à fé são de todo justas e podem ser utilizadas para registrar méritos remissórios no céu, do mesmo modo que Mateus6.20 nos adverte: “Mas acumulem para vocês tesouros nos céus”.

Por outro lado, a visão protestante da justificação é que a justificação é dom de Deus, por meio da graça imerecida. A fé é resultante do amor e da justiça de Deus, como em 1 João 4.10, que afirma que “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou e enviou Seu Filho como propiciação por nossos pecados”. Essa justificação é realizada em nós por meio da palavra e dos sacramentos. Lei e evangelho trabalham continuamente para matar nosso ego pecaminoso e gerar uma nova criatura dentro de nós. Esta nova criatura dentro de nós, em essência, é a fé em Cristo.

Se não temos essa fé, somos ímpios. Nesses casos, indulgências ou orações não acrescentam nada e de nada servem. Entretanto, é preciso também entender que todos manifestam, em algum momento, algum tipo de fé (geralmente em si mesmos). Esse é o tipo de fé combatido pelos evangelhos, uma crença que se produz e conquista por nossos próprios esforços, consubstanciado nas boas obras. Por isso precisamos de Deus, que nos amou enquanto éramos infiéis a ele, para destruir essa fé hipócrita e prostituída e substituí-la pelo arrependimento e pela crença na remissão pelo sacrifício e ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo.

A justificação é, então, promovida pela fé que vem de Deus e se manifesta por meio da lei e do evangelho, das obras e sacramentos, e que nos capacita a obedecer a Deus pela fé e pela fé nos habilita a realizar boas obras, do começo ao fim da nossa jornada, como em Romanos 1.17, “Porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está escrito: “o justo viverá pela fé.””.

Portanto, a verdadeira distinção entre as visões protestante e católica não é simplesmente uma questão de "ser declarado justo" versus "ser feito justo", mas sim o meio pelo qual um é justificado. Na teologia católica obras de justiça são consideradas meritórias para a salvação, além da fé, enquanto que na teologia protestante, obras de justiça são vistos como o resultado e evidência de uma verdadeira justificação e regeneração que o crente recebeu somente pela fé.
 No documento fundador da Reforma, as 95 teses, Lutero diz que:
“1 – Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo: "Arrependei-vos..." (Mateus 4:17) certamente quer que toda a vida dos seus crentes na terra seja contínuo arrependimento.
...
36 – Qualquer cristão que está verdadeiramente contrito tem remissão plena tanto da pena como da culpa, que são suas dívidas, mesmo sem uma carta de indulgência.
...
76 – Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados venais no que se refere à sua culpa.
...
95 – E assim esperem mais entrar no Reino dos céus através de muitas tribulações do que facilitados diante de consolações infundadas. (Atos 14:22).”

Além disso, os meios pelos quais uma pessoa recebe a justificação são também uma divisão fundamental entre a crença católica e protestante. Na teologia católica, a fé não é um pré-requisito para a justificação e o meio pelo qual a justificação é aplicada na alma é o sacramento do batismo. Naquele momento, mesmo no caso das crianças, a graça da justificação e santificação são infundidas na alma, tornando o destinatário justificado, antes mesmo que ele exerça sua própria fé (ou, no caso de uma criança recém-nascida, antes mesmo que ele tenha a capacidade de compreender o Evangelho e responder com fé). Para os católicos, a função do batismo é "exoperereoperato" (por obra do ato), e, portanto, é o ato eficaz e suficiente para trazer justificação.  O mesmo ocorre com os já falecidos, para quem a justificação por ser adquirida por outros, mediante intercessão e súplicas post-mortem.

Na teologia protestante, no entanto, a manifestação da fé do indivíduo é absolutamente necessária e é por si mesma a resposta eficiente e suficiente do indivíduo para os efeitos da justificação.

Por fim, apesar de aparentemente divergir, Paulo e Tiago declaram a mesma coisa: que a verdadeira fé salvífica produzirá infalivelmente obras de amor. Tiago utiliza a fé de Abraão para defender a salvação resulta da fé em ação, evidenciada nas obras que resultam do amor e dedicação a Deus. Já Paulo utiliza a fé de Abraão para ratificar sua tese de que a salvação é graça de Deus, mediante o dom da fé, não alcançada por mérito próprio. O ponto em comum, de novo, é o amor, não por acaso, o caminho ainda mais excelente de Paulo.
 
A doutrina Sola Fide é às vezes chamada de princípiomaterial da teologia da Reforma Protestante, porque era a questão doutrinária central para Martinho Lutero e os outros reformadores. Lutero chegou a chamá-la de "doutrina pela qual a igreja permanece ou cai" (em latim: articulusstantis et cadentisecclesiae).

Talvez porque, naquele tempo, decorria diretamente da doutrina da justificação pelo mérito o conceito de que a graça de Deus podia ser tratada como um bem a ser adquirido, daí a venda de indulgências e cargos eclesiásticos. Hoje em dia, essa prática não mais acontece, porém, este conceito ainda está em voga, fazendo-se presente sempre que alguém tenta barganhar algum tipo de graça de Deus, por meio de promessas, sacrifícios ou venda de bênçãos.






Romero Lobo é Coronel da Aeronáutica,
Mestrado em Ciências Políticas,
e autodidata em História das Religiões

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