Por Romero Lobo
Sola
Fide é o ensinamento de que a justificação (interpretada na teologia
protestante como "sendo declarada apenas por Deus") é recebida
somente pela fé, sem qualquer interferência ou necessidade de boas obras, como
Paulo afirma em Efésios 2.8, “Vocês são salvos por meio da graça, por meio da
fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus”. Na teologia protestante clássica,
essa fé salvadora é evidenciada, mas não determinada, pelas boas obras, uma
doutrina que pode ser resumida na fórmula "fé produz justificação e boas
obras".
Em
contraste, a fórmula Católica Romana declara que "a fé e as boas obras
rendem justificação". O argumento católico é baseado na Epístola de Tiago
(Tiago 2.14,17):
“De que
serve, meus irmãos, se alguém disser que tem fé se não tiver obras? Acaso pode
essa fé salvá-lo?
Se um
irmão ou uma irmã estiverem nus e necessitarem do pão quotidiano,
E algum
de vós lhes disser: "Ide em paz, aquentai-vos e saciai-vos," e não
lhes derdes o que é necessário para o corpo, que lhes aproveita?
Assim também
a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma.”
É
importante a comparação do que católicos e protestantes entendem como
"justificação": ambos concordam que o termo invoca a transmissão dos
méritos do sacrifício de Cristo aos pecadores e não uma declaração de ausência
de pecado. Lutero usou a expressão “simuljustus et peccator” (ao mesmo tempo,
justo e pecador). Mas o Catolicismo Romano vê a justificação como uma
comunicação da virtude de Deus ao ser humano, limpando-o do pecado e
transformando-o realmente em filho de Deus, de modo que não é apenas uma
declaração, mas a alma é tornada de fato objetivamente justa.
Se essa
alma é verdadeiramente justa, para os católicos, as obras que atuam junto à fé
são de todo justas e podem ser utilizadas para registrar méritos remissórios no
céu, do mesmo modo que Mateus6.20 nos adverte: “Mas acumulem para vocês
tesouros nos céus”.
Por
outro lado, a visão protestante da justificação é que a justificação é dom de
Deus, por meio da graça imerecida. A fé é resultante do amor e da justiça de
Deus, como em 1 João 4.10, que afirma que “Nisto consiste o amor: não em que
nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou e enviou Seu Filho como
propiciação por nossos pecados”. Essa justificação é realizada em nós por meio
da palavra e dos sacramentos. Lei e evangelho trabalham continuamente para
matar nosso ego pecaminoso e gerar uma nova criatura dentro de nós. Esta nova
criatura dentro de nós, em essência, é a fé em Cristo.
Se não
temos essa fé, somos ímpios. Nesses casos, indulgências ou orações não
acrescentam nada e de nada servem. Entretanto, é preciso também entender que
todos manifestam, em algum momento, algum tipo de fé (geralmente em si mesmos).
Esse é o tipo de fé combatido pelos evangelhos, uma crença que se produz e
conquista por nossos próprios esforços, consubstanciado nas boas obras. Por
isso precisamos de Deus, que nos amou enquanto éramos infiéis a ele, para
destruir essa fé hipócrita e prostituída e substituí-la pelo arrependimento e
pela crença na remissão pelo sacrifício e ressurreição de nosso Senhor Jesus
Cristo.
A
justificação é, então, promovida pela fé que vem de Deus e se manifesta por
meio da lei e do evangelho, das obras e sacramentos, e que nos capacita a
obedecer a Deus pela fé e pela fé nos habilita a realizar boas obras, do começo
ao fim da nossa jornada, como em Romanos 1.17, “Porque no evangelho é revelada
a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está
escrito: “o justo viverá pela fé.””.
Portanto,
a verdadeira distinção entre as visões protestante e católica não é
simplesmente uma questão de "ser declarado justo" versus "ser feito
justo", mas sim o meio pelo qual um é justificado. Na teologia católica
obras de justiça são consideradas meritórias para a salvação, além da fé,
enquanto que na teologia protestante, obras de justiça são vistos como o
resultado e evidência de uma verdadeira justificação e regeneração que o crente
recebeu somente pela fé.
No documento fundador da Reforma, as 95 teses,
Lutero diz que:
“1 –
Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo: "Arrependei-vos..." (Mateus
4:17) certamente quer que toda a vida dos seus crentes na terra seja contínuo
arrependimento.
...
36 –
Qualquer cristão que está verdadeiramente contrito tem remissão plena tanto da
pena como da culpa, que são suas dívidas, mesmo sem uma carta de indulgência.
...
76 –
Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem anular sequer o
menor dos pecados venais no que se refere à sua culpa.
...
95 – E
assim esperem mais entrar no Reino dos céus através de muitas tribulações do
que facilitados diante de consolações infundadas. (Atos 14:22).”
Além
disso, os meios pelos quais uma pessoa recebe a justificação são também uma
divisão fundamental entre a crença católica e protestante. Na teologia
católica, a fé não é um pré-requisito para a justificação e o meio pelo qual a
justificação é aplicada na alma é o sacramento do batismo. Naquele momento,
mesmo no caso das crianças, a graça da justificação e santificação são
infundidas na alma, tornando o destinatário justificado, antes mesmo que ele
exerça sua própria fé (ou, no caso de uma criança recém-nascida, antes mesmo
que ele tenha a capacidade de compreender o Evangelho e responder com fé). Para
os católicos, a função do batismo é "exoperereoperato" (por obra do
ato), e, portanto, é o ato eficaz e suficiente para trazer justificação. O mesmo ocorre com os já falecidos, para quem
a justificação por ser adquirida por outros, mediante intercessão e súplicas
post-mortem.
Na
teologia protestante, no entanto, a manifestação da fé do indivíduo é
absolutamente necessária e é por si mesma a resposta eficiente e suficiente do
indivíduo para os efeitos da justificação.
Por
fim, apesar de aparentemente divergir, Paulo e Tiago declaram a mesma coisa:
que a verdadeira fé salvífica produzirá infalivelmente obras de amor. Tiago
utiliza a fé de Abraão para defender a salvação resulta da fé em ação, evidenciada
nas obras que resultam do amor e dedicação a Deus. Já Paulo utiliza a fé de
Abraão para ratificar sua tese de que a salvação é graça de Deus, mediante o
dom da fé, não alcançada por mérito próprio. O ponto em comum, de novo, é o
amor, não por acaso, o caminho ainda mais excelente de Paulo.
A
doutrina Sola Fide é às vezes chamada de princípiomaterial da teologia da
Reforma Protestante, porque era a questão doutrinária central para Martinho Lutero
e os outros reformadores. Lutero chegou a chamá-la de "doutrina pela qual
a igreja permanece ou cai" (em latim: articulusstantis et
cadentisecclesiae).
Talvez
porque, naquele tempo, decorria diretamente da doutrina da justificação pelo
mérito o conceito de que a graça de Deus podia ser tratada como um bem a ser
adquirido, daí a venda de indulgências e cargos eclesiásticos. Hoje em dia,
essa prática não mais acontece, porém, este conceito ainda está em voga, fazendo-se
presente sempre que alguém tenta barganhar algum tipo de graça de Deus, por
meio de promessas, sacrifícios ou venda de bênçãos.
Romero
Lobo é
Coronel da Aeronáutica,
Mestrado em Ciências Políticas,
e autodidata em História das Religiões
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